Os mistérios da Amnésia Global Transitória

Por Maramélia Miranda

Vemos regularmente, aqui e ali, casos de Amnésia Global Transitória (AGT) na nossa prática clínica. Costumo falar: nem é raro, nem é frequente, mas “de tempos em tempos, sempre aparece um casinho”.

Capa do livro sobre o tema, do neurologista Britt Daniel. Fonte: site do autor.
Capa do livro sobre o tema, do neurologista Britt Daniel. Fonte: site do autor.

Sintomas inconfundíveis, quadro clínico clássico (veja AQUI os critérios diagnósticos), e quase sempre chegam com a história bonitinha, redonda, como se tivessem realmente “lido o livro” para nos contar.  O paciente, coitado, geralmente assiste a narrativa da família ou testemunha rindo de si mesmo!

Mas a pergunta que até hoje tentamos responder é: de onde vem isso!? Que coisa maluca-cinematográfica-novelesca é essa que deixa o indivíduo sem saber onde foi, o que fez ou o que iria fazer… Muitos dos casos conta que chegou a pegar o carro, dirigir, pagar contas em banco e sacar dinheiro, fazer supermercado, tudo em plena crise de AGT!? E depois não lembra de nada! Que é estranho, isso é!

Teorias

As quatro clássicas teorias de causa epileptogênica, evento pós-estresse / psicogênico, vascular isquêmica e vascular por insuficiência venosa são o atestado maior de que, numa doença com muitas teorias, ninguém sabe realmente de nada!

Atualmente, ganham cada vez mais força na fisiopatologia da AGT: a tese da insuficiência vascular venosa das jugulares, com base nos estudos com ultrassonografia venosa cervical, demonstrando a ocorrência de refluxo venoso jugular bem mais prevalente na população com AGT quando compara-se com controles normais. E a teoria psicogênica, relacionando comorbidades psiquiátricas, estresse e afins com a ocorrência de crises e dos casos raros que recorrem.

Estudos recentes

Barachinni e colaboradores publicaram na Stroke, em 2012, um excelente trabalho com o US venoso cervical e US transcraniano, estudando pontualmente as veias jugulares cervicais e suas válvulas, bem como as veias basais de Rosenthal e veia de Galeno, responsáveis diretas pela drenagem do lobo temporal mesial e hipocampo – local onde são vistos os focos puntiformes de alteração de sinal na ressonância do crânio, em uma parcela dos pacientes (vejam imagem abaixo, de um dos meus recentes casos, e procurem a alteração do hipocampo…).

 Imagem característica de AGT na ressonância: foco puntiforme de restrição à difusão na sequência Difusion-Weighted-Imaging (DWI), localizada estrategicamente no hipocampo esquerdo.

Estranhamente, o grupo italiano não acho nada de errado nas veias intracranianas! Mas confirmaram os achados dos autores e grupos anteriores, de que há, sim, mais casos de insuficiência venosa jugular nos casos de AGT… 

O que fazer, afinal, com os pacientes!?

Continuamos atendendo as AGTs, aos pouquinhos, cada um em seu serviço. Eu conto uma média de 12-15 casos/ano, no serviço onde atuo. Pioneiros e desbravadores da fisiopatologia neurológica começam, timidamente, a pesquisar a tal insuficiência venosa jugular, mas faltam radiologistas/ultrassonografistas treinados e preparados em fazer este difícil exame.

Difícil no nome… US venoso cervical para pesquisa de insuficiência venosa jugular.

Difícil na técnica… Não comprimir as veias, usar muito gel, não dobrar o pescoço dos pacientes, testar em supino e sentado, usar Valsalva, etc…

E a pior parte: Detectamos a insuficiência venosa! E daí?! O que fazer, dizer ou orientar a estes doentes? “Olha, você teve uma AGT, tem uma RM de crânio com um pontinho de infarto no hipocampo, e também possui uma insuficiência venosa jugular.” “Doutora, o que tenho que tomar? Não posso mais transar?!”… Claro que pode fazer tudo, mas que eu tenho vontade de dizer: não sei o que faço com você, ah… Isso tenho. Enquanto minha ignorância não é sanada, dou uma aspirina 100mg ao dia aos meus doentes… E rezo para que alguém me ajude e descubra realmente o que acontece, e o que eu devo fazer!

O nosso colega, Dr. Flávio Carvalho, neurologista da UNIFESP e do HIAE, numa das nossas recentes discussões sobre este tema incrível, falou sabiamente: “O estranho é imaginar que o indivíduo com insuficiência valvar venosa tenha isso todos os dias da vida dele e faça milhares de Valsalvas durante a vida, mas só tenha a repercussão clínica como uma AGT num único dia apenas!? Seria a AGT igual a um acidente de avião (um em um milhão)?”

Ou seja, concordando com ele, tem que ter alguma outra coisa, junto com a insuficiência venosa jugular, para explicar o porque de um evento único, singular, estranho e que quase nunca se repete.

Mistério total. E como dizem nossos amigos yankees e ingleses: “Intriguing disease!”


2 thoughts on “Os mistérios da Amnésia Global Transitória”

  1. Suellen, a questão do tempo é importante… E penso que há um tempo mínimo sim. É muito, muito raro ter o período amnéstico por menos de 1 hora (ocorre, nas séries relatadas, em menos de 3% dos casos), e a maioria dos casos ficam algumas horas, numa média de 5-6 horas, com os sintomas. Entretanto, Hodges e col. publicaram na JNNP em 1990, propondo os seguintes critérios diagnósticos para AGT, onde há apenas o tempo máximo:
    — Presença de amnésia anterógrada
    — Sintomas presenciados por uma testemunha
    — Não deve haver alteração nenhuma da consciência ou perda / alteração da própria identidade
    — Não deve haver nenhuma outra alteração cognitiva que não a amnésia
    — Não deve haver nenhum sinal focal neurológico ou sinais de epilepsia – crise epiléptica
    — Não deve haver história de trauma recente ou epilepsia / convulsões
    — Resolução em até 24 horas

  2. A AGT tem um intervalo de tempo mínimo para que seja caracterizada ou apenas por poucos minutos já podems suspeitar se nesse intervalo o paciente fez alguma atividade que seria impossível esquecer?
    Obrigada.

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